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UM
MOMENTO ENTRE DUAS VIDAS
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A
Missao - Parte II – Imaginando o lançamento
Marcos Pontes
05/03/2006
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Onze
horas. Difícil fechar os olhos. Ouço ruídos
nos corredores do Centro de Preparação em Baikonur.
Passos e vozes abafadas. Médicos discutem os últimos
resultados dos nossos exames. A noite que antecede ao lançamento
é longa para a tripulação. A necessidade
do descanso parece contribuir negativamente na vontade de dormir.
Os pensamentos circulam na mente como um filme confuso que mistura,
na mesma sequência, procedimentos, expectativas, olhos,
oásis e vozes do passado.
Manhã
do dia trinta de março de 2006. O sol ainda não
nasceu. Nós já estamos de pé. Olho meu
rosto no espelho. Cabelos brancos, cansaço e felicidade.
Aproveito bem o banho. Será o último em um chuveiro
pelos próximos onze dias, ou mais. Seguimos para a sala
de preparação através de corredores brancos
iluminados e muitos desejos de bom vôo. Cheiro de álcool.
Instalação dos sensores médicos. O macacão
de vôo, Sokol, veste como uma luva. Sorrisos. Olhares
de incentivo entre os tripulantes. Tensão positiva. Finalmente,
depois de tantos anos de luta, estamos prontos. Hora de seguir
o destino. Apertos de mão. Abraço forte.
Caminhamos juntos. Andar com o Sokol não é confortável,
mas, nesse dia, o peso gigantesco que carreguei nas costas pelos
últimos 8 anos ficou para trás. A expectativa
de milhões de brasileiros para que eu realizasse esta
primeira missão espacial para o país, está
sendo satisfeita. Caminho agora para cumprir a minha parte.
Caminho, independente do resultado, ou de minha vida. Caminho
para “fazer”, para cumprir a minha promessa e decolar
com a bandeira do Brasil para o espaço. Caminho feliz.
Antes do embarque no ônibus, formalidades, fotos, acenos,
expressões, em várias línguas, de motivação
e boa sorte. Nossas bandeiras estão estampadas nos braços.
Mas, nessa hora, ninguém observa isso. Somos apenas representantes
da raça humana, rumando para fora desse planeta.
No ônibus nos despedimos da multidão que se comprime
para tocar a janela do veículo. O vidro separa nossas
mãos espalmadas das mãos que despedem do lado
de fora. Na estrada entre o deserto e o sol nascente, assistimos
as mensagens gravadas pelas nossas famílias. Inspeções
nos equipamentos. Conselhos, recomendações.
Uma parada estratégica. Última chance de “esvaziar
o tanque” nas próximas horas de viagem. Tradição
prática. Sigo à risca.
Novamente em movimento, observo a paisagem pela janela do ônibus.
Deserto, quase nenhuma vegetação. Espinhos e pedras
ficando para trás. Para mim, de um modo simbólico,
representam todas as dificuldades, críticas, traições
e pessimismos com os quais lutei durante todos esses anos de
projeto. O treinamento sempre seguiu como deveria. E é
ele que, hoje, me assegura a confiança necessária.
Seguimos em frente.
No horizonte, surge, majestoso, o nosso foguete iluminado pelos
holofotes, pronto, na plataforma. Lá está o futuro.
É para lá que vamos. As pedras e os espinhos no
chão, na areia do deserto, já não são
mais importantes. Ficarão lá, estagnados, aguardando
que mais uma tripulação por ali passe, e que talvez
alguém lhes dedique alguma atenção passageira.
A medida que nos aproximamos, posso ver mais detalhes. As estruturas,
luzes, cabos, umbilicais, vapores que se espalham no ar frio
da manhã.
O ônibus para. Chegamos. Saimos do ônibus. Olho
para cima. No topo de 47 metros de estrutura elegante e quase
200 toneladas de combustível, lá está nossa
nave! Sinto um agradável conforto ao vê-la. Já
estivemos dentro dela algumas vezes. É como se tivesse
vida. Nossa amiga “acinturada” que irá compartilhar
conosco os próximos 2 dias, protegendo-nos das condições
hostis do caminho que ela conhece tão bem: o caminho
para as estrelas. A frase do emblema da Academia de Força
Aérea, em Pirassununga, vem a minha mente: “ânimo
jovem! Por este caminho chegará aos astros!”
Antes de chegarmos à plataforma, mais formalidades, despedidas.
Um último aceno da escada. Fotos, sorrisos e pensamentos
distantes.
Entramos na cabine. Mais uma vez depois de tantos treinamentos.
Atenção com cada detalhe. O interior é
apertado, mas ela nos acolhe sob medida. Amarração
firme. Última verificação pela equipe de
apoio.
O “hatch” da cápsula é fechado. Momento
de silêncio. Escuto meu coração. Respiro
fundo para relaxar enquanto ouvimos a escotilha do compartimento
de habitação sendo travada por fora. Procedimentos
preliminares. Cheque rádio. Tudo pronto. Agora é
esperar, e esperar.
“As horas passam lentas dentro desses minutos de expectativa”.
Memorizo as indicações dos instrumentos. Ruídos
diversos. Equipamentos seguem a sequência de acionamento.
Tudo funciona como um relógio. Dentro da cápsula,
olhamos uns para os outros. Verificamos mutuamente se tudo está
de acordo com nossos trajes, conexões e fixação
ao assento. Vencidas todas as dificuldades do treinamento juntos,
agora somos um time coeso, com um cuidado especial um pelo outro.
Como se ganhássemos, cada um de nós, dois irmãos.
Estendo meu braço esquerdo. Apertamos as mãos,
os três juntos. Sinal de força e união.
Agora estamos sós. Agora é conosco. O próximo
ser humano está bem distante, bem abrigado do risco de
uma explosão na partida.
A minha frente, abaixo do painel, está o compartimento
com a bandeira do Brasil. Coloco a mão sobre ele. Um
instante de oração. Peço a Deus que sempre
dê sonhos, motivação, saúde e felicidade
para cada pessoa do meu país, especialmente àqueles
que já perderam as esperanças. Peço que
isso tudo não seja em vão. Independente de qualquer
resultado, que a atitude seja entendida e seguida.
Ali, pronto para decolagem, lembro de pessoas que me ajudaram
e sempre estiveram ao meu lado. Lembro dos olhos azuis e da
voz de minha mãe - quando eu estava de cama, com hepatite
- dizendo que: “eu poderia realizar qualquer coisa na
vida se eu assim desejasse, realmente, do fundo da alma”.
Momentos marcantes da vida. Sorrisos, vozes, felicidade. O nascimento
de cada filho. Minha mulher. Meu pai. Meus irmãos. “Grande
Brezinski! Passamos do F-15!”. O carinho das pessoas que
amo. As mensagens de apoio que recebo de tantos brasileiros.
Imagino como deve estar o Brasil nesse momento. O que estariam
pensando?
Oito horas e trinta minutos, a contagem regressiva começa.
Dez segundos. Atenção concentrada. A respiração
espera. Cinco segundos. Vibração. Decolagem! Instante
único. História viva.
O relógio de bordo dispara. Um momento entre duas vidas:
antes e depois. Os segundos correm no mostrador digital. A estrela
de quatro pontas risca o céu deixando para trás
um rastro de fumaça branca e muitas memórias.
Vencemos! Minha vida não é mais a mesma. O Brasil
não é mais o mesmo.
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